domingo, 21 de fevereiro de 2021

Obras-Primas – “Berlin” – 1973 – Lou Reed

Quando entrou na adolescência, Lou Reed comunicou ao seus pais perfeitamente conservadores, durante um jantar, que era homossexual. A resposta foi colocá-lo em um manicômio onde tomou tantos choques elétricos que perdeu a memória e se esqueceu até de quem era. Isso moldou sua personalidade. Sempre foi conhecido pelo incrível talento literário. Ele fez faculdade na área de literatura e sempre desfrutou de grande status de escritor. Era ensaísta e poeta e um bom letrista de canções. Seus instrumentos sempre foram o violão e a guitarra. Sempre foi terrível nas críticas ácidas e até destrutivas, inclusive com bons amigos e amantes. Logo sua vontade se direcionou para a música. Ele saiu do interior de Nova York e foi morar em Manhattan, conheceu Andy Warhol, entrou no V.U. e o resto é história.

Quando resolveu sair da Velvet Underground, Lou Reed lançou um álbum muito fraco de estreia, mal produzido, com poucas faixas originais de destaque. A gravadora RCA sabia do potencial das canções de Reed e deu-lhe liberdade para contratar o produtor que quisesse. Ele contratou um fã, David Bowie, que junto com seu parceiro, arranjador e brilhante guitarrista Mick Ronson produziram Transformer, o primeiro grande sucesso solo da carreira de Reed.

Acontece, que o cara nunca gostou do sucesso, Freud explica. Lou Reed achava a fama e a adulação coisas fúteis que não combinavam com seu espírito estóico-existencialista. Lou Reed era viciado em “speed”, anfetamina barata de farmácia, e, claro álcool. Basta ver os vídeos de making of de Transformer para ver como para ele foi um pé no saco ter que trabalhar com outros egos. Bowie era respeitado, mas Ronno fica claro que não. A recíproca foi verdadeira.

Transformer espelha musicalmente mais a David do que a Lou. Isso contrasta muito com as letras sombrias e pessimistas do disco, o que torna a interação particularmente vibrante. Mas aquilo não era o lance de Reed. Ele não voltou a trabalhar com Bowie depois disso.

Com a explosão do segundo disco, a gravadora mais uma vez deu carta branca a Reed que contratou um dos melhores produtores do período, o cara que ajudou a criar School’s Out e catapultou Alice Cooper para fama mundial, o “mago” Bob Ezrin. Mais uma vez em Londres, onde ele gravara os álbuns anteriores, Lou, com sua retórica, e fortes argumentos artísticos, conseguiu convencer músicos como Jack Bruce, Steve Winwood e Ainsley Dunbar, os irmãos Becker, além do sempre presente Steve Hunter, a embarcar nessa jornada.

O problema do novaiorquino com drogas e alcoolismo se somou à adição do produtor por cocaína e o clima das gravações foi uma espiral depressiva que poderia ter terminado em morte não fosse a excelência da obra como um todo.

No entanto, Berlin é um álbum conceitual que marca o apogeu da poesia sombria, urbana e decadente que Lou Reed encarna com perfeição. O discurso das ruas das grandes metrópoles. É uma obra duradoura, de rara beleza e que influenciou gerações de roqueiros como Siouxie, Iggy Pop e Ian Curtis. A história é de gente pobre, underground mesmo, em sua medíocre vida nos grandes centros urbanos como Berlim. A linguagem de Reed é direta, cruel como ele, descritiva. Como o cinismo na cultura foi para o mainstream somente com o advento do Punk, sim, esse disco é um precursor, assim com o V.U., é óbvio.

O disco começa com uma explosão de uma colagem de sons urbanos e uma contagem em alemão. Em seguida entra um piano romântico e, bem baixinho, Lou começa a cantar a faixa título. É o encontro do casal. Mas é banal, triste. Deveria ser um momento incrível, mas é triste pois o tema do álbum é justamente esse, como é triste o amor. Não há esperança. O autor se propõe a contar a história desse casal, até o final mais que trágico. O homem rouba os filhos e a mulher se suicida. Coerentemente, a última e épica canção, Sad Song (“Canção Triste”) é alegre e possui um belo arranjo de cordas de Ezrin, fechando o álbum em um clima feliz em que se comemora a derrocada do amor. Bem ao estilo de Lou.

O álbum são aproximadamente 50 minutos de canções que vão se emendando umas nas outras. Após o começo em volume baixo, vem a vibrante Lady Day, uma marcha lenta que começa com um piano e órgão hammond brilhantes e muitas viradas de bateria, que já anuncia as coisas que o homem tem que suportar por estar com uma mulher, sempre num clima de pessimismo e desleixo. O autor usa muito, ao longo da obra, expressões como “Eu não Ligo” ou “Tanto faz”. É o desprezo de Lou Reed pelo amor e pela vida se manifestando. A canção é um clássico absoluto! “And I said No, No, No, Oh Lady Day”, brada o refrão entre fraseados rítmicos e uma harmonia que leva o som a um rock progressivo. É uma música que ilumina o disco de cara. Tem um clima épico e o arranjo realça essa beleza. Um naipe de flautas enfeita as últimas repetições do refrão que acaba em fade out.

Em seguida, Man of Good Fortune traz a guitarra em destaque marcando o ritmo e o baixo de Bruce pela primeira vez em aparecendo bem. É uma música que leva o disco pro lento, mas tem, aparentemente, um clima em tom maior, positivo. Contudo, o amargor continua, com a letra demonstrando uma tremenda desesperança nos homens e na espécie humana em geral, com o dinheiro dominando todas as relações. Ela ironiza o “sucesso”, justamente aquilo que o poeta considera fútil. O refrão termina em fade out de novo.

Entra a vibrante Carolyne Says I que tem o predomínio do baixo de Bruce e da bateria, no começo. Depois o ritmo engrena em algo mais rock’n roll (lembra as bases do Cream), entram coros bowieísticos e orquestrinhas. Mas apesar de toda a alegria, a canção é um relato cínico e pessimista de como as mulheres em geral tratam os homens (Na visão de Lou, claro). A música termina abruptamente, com uma pratada, em plena alegria orquestral.

O baixo em acordes inicia o clássico How Do You Think It Feels. A bateria entra nessa canção lenta e bem Roquenrol. E a guitarra de Steve Hunter aparece brilhante, acompanhada de Metais maravilhosos meio soul, inseridos por Ezrin. Que sonzera! Nesse momento, o solo vem repetindo a melodia do refrão em cima, e respondendo, como em um blues, as chamadas do cantor. Tudo termina em um momento apoteótico com mais um solo genial no fim. Mas a letra é bem sombria. Fala essencialmente em ser um drogado e estar sozinho.

Entra então Oh Jim com metais lembrando os climas Motown e mais um solo de Hunter no final. Começa com a bateria e vai num crescendo. Mas a canção tem uma segunda parte. Lou canta sozinho com um violão, voz e instrumento cheios de reverb, dando oficialmente ao álbum o início da fase esteticamente sombria.

O que seria o início do lado B no vinil é Carolyne Says II. Um repeteco muito mais lento e pouco vibrante em comparação com a primeira edição, e mais destrutivo, como era de se esperar. A barra pesou, o cara começa a bater na mulher e o história descamba totalmente pra uma bad. Mais uma vez só Lou e o Violão emolduram o começo dessa canção, quase acústica. O piano, bateria e baixo só entram mais pra frente. É uma balada arrastada com Reed quase sussurrando a letra. Ainda há a orquestra de cordas no fim. Um momento sutil e belíssimo do álbum.

The Kids conta a história de uma mulher que perde seus filhos e de um homem que se diverte com isso. “They´re taking her children away because the things she did in the streets”. (Eles levaram seus filhos por causa do que ela fez nas ruas). Uma prostituta? Sim, esse é o submundo que Lou tenta pintar. A parte musical é simples, quase básica (como uma música infantil), parece uma canção de ninar. Lou canta baixo e quase falando. Mais uma vez a canção arrasta-se e se impõe como um dos momentos mais tristes do disco. Crianças clamam alto pela mãe em gravações reais inseridas, o que só aumenta o desespero e a ironia. Nessa fase, o baixo domina a música, enquanto brinca de mudar de acorde, subindo e descendo. A canção se arrasta, despida. O lado B vai contrastando propositalmente com o Lado A.

O ápice do disco é The Bed. O lugar onde o casal concebeu seus filhos, a cama, vira palco para o suicídio. Essa é uma canção um pouco diferente. Mais uma vez só o poeta e o violão com acordes que não são usuais de Reed. Ele parece cantar com dor na alma. É realmente muito triste. O "uuu" do final do refrão, cantado em falsete, leva o desespero à última nota emitida por Lou. Um momento real de danação. A sombra da morte, da dor e da desilusão pairam sobre a música criando um clima de depressão real. No final, um clima de mistério, brumas e dissonância. Rumamos para a vibrante canção final.

Reed e Ezrin foram fundo nesse disco. Lou apresentou e heroína para o produtor e ambos se viciaram até os últimos limites. Eles viveram o clima do disco e saíram vivos. O álbum, foi um relativo fracasso comercial, bem o que Lou Reed queria. Mas ele realizou sua grande obra e poucas vezes repetiria tamanha excelência. Para não perder o contrato com a RCA, em seguida, Lou Reed deu à gravadora dois álbuns comerciais que fariam a festa dos executivos (Sally Can’t Dance e Coney Island Baby) e que pra ele sempre vão representar um “tanto faz”. Lou Reed jamais amaria o sucesso. Não naquele momento ao menos.



3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Uau, história dramática. Digna da alma inquieta dos grandes artistas que buscam respostas no mais íntimo do ser, mas que infelizmente encontram nas drogas o alívio imediato...

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  3. É uma das grandes histórias do rock, a do Lou Reed. A obra dele tbem não fica atrás. Abraços.

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