sábado, 1 de maio de 2021

Crônica – In The Begin de Begin

Nunca poderemos deixar de pensar que uma das eras de ouro de nossas existências foi a infância. É aquele período encantado em que todas as memórias nos remetem à nostalgia absoluta. Uma verdade surge pra quem foi feliz como eu e ancora sua memória na música: os 70 foram bons tempos. Não tiveram a magia dos 60 onde tudo convulsionou em revoluções completas ou parciais transformando o mundo, muito pelo contrário. Foram acomodados, moderadamente consumistas e, na América Latina, autoritários. Mas eu era muito criança, até tinha alguma consciência da situação política porque minha mãe era professora e meus pais sempre me deram muitos livros. Meu refúgio maior pra essa realidade que começava a ficar mais difícil para minha geração sempre foi o som.

Fiz meu pai doar uma maravilhosa Eletrola (que tocava até dez lados de Lps contínuos!) porque ela tinha um pequeno defeito. Por desgaste no potenciômetro do volume ela disparava um som alto de vez em quando. Eu levava um susto, era muito pequeno, devia ter uns 3 anos. Os Lps da coleção de minha casa usei como direção de automóvel em minhas brincadeiras – curiosamente nunca aprendi a dirigir – de motorista de táxi! Tal fato fez com que meu pai iniciasse uma coleção de discos nova na próxima vez em que adquiríssemos um som onde iriam aparecer muitas das coisas marcantes que ouvi quando menino.

Em um aniversário do velho, minha mãe sugeriu que comprássemos um novo aparelho. Ela queria fazer uma surpresa porque ele se ressentia de ter dispensado sua eletrola. Me lembro de irmos em uma loja que ficava no Largo do Medeiros, na Rua da Praia, chamada de Casa Victor, onde hoje fica a Livraria Paulinas. Era uma mundo maravilhoso de aparelhos de som como eu nunca tinha visto. Claro, nosso orçamento era bem modesto – parcelado – mas o que vale é a intenção. Precisávamos escolher algo estéreo, “moderno”, conforme as exigências da época, que coubesse em nossa renda. Acabamos escolhendo um portátil estéreo Phillips 603, que funcionava a pilha ou ligado na tomada. Era como uma maleta ocre, uma caixa com alça para transportar facilmente. As caixas acústicas eram destacáveis e serviam de tampa para o prato. Também se separavam uma da outra quando retiradas. Eu sempre achei o som muito agudo, mas aquela foi meu primeiro veículo para onde viajei pelas galáxias sonoras de meu tempo.


Me recordo dos discos de orquestra que meu pai adquiria. Frank Pourcel, Paul Mauriat, Ray Conniff, Billy Vaughn, Ferrante & Taicher (dois pianistas), Mantovani (A Lenda da Montanha de Cristal). Mas também havia os Beatles, Elvis Presley, Elis Regina e muitos discos de Samba, geralmente coletâneas de sucessos da época como Samba Maior, e cantoras de samba como Clara Nunes e Alcione, enfim, bastante ecletismo. Esse foi o meu catecismo de início de vida, doutrina melódica, rítmica e harmônica.

Em seguida, como se eu tivesse me adonado desse universo, passei a adquirir por insistentes pedidos de verbas, coletâneas pop da época – 1976-77-78 – como as da K-Tel – In Concert, Music Express, Dynamite – e , mais adiante, voltada para o astral Disco, a onda que tomou conta do Brasil no fim dos 70 a partir da exibição da Novela Dancin’ Days na Globo em 1978-79, as próprias Trilhas de Novelas. Havia nessa vibe, os álbuns de festa no quarto – ou reunião dançante – com faixas mixadas emendadas para dar conta da falta de um DJ, o Discoteca Papagaio, Hippopótamus Disco Club, Banana Power. Esses discos tinham nomes de discotecas famosas, geralmente de Rio e São Paulo. Toda essa salada de estilos foi influência, além de meu núcleo familiar, de minhas primas, meus amigos, meus colegas de aula.

Não havia preconceito ainda. A MUZAK comercial que ouvíamos, vejo hoje, era inofensiva, porque era música. Tínhamos o Village People, o Boney M. e o Silver Convention, as incríveis Harmony Cats, mas junto tivemos o Revival dos 50 e 60 provocado por novelas de época como Estúpido Cupido. Tínhamos variedade e riqueza. Liberdade auditiva e variedade radiofônica, havia a MPB do Chico e Caetano, Milton e Gonzaguinha que crescemos ouvindo, e mais, tínhamos aula de música na Escola. Trocamos nosso portátil por um Phillips estéreo com grandes caixas acústicas (do qual eu ainda reclamava porque meu sonho era ter um Gradiente, a nova mania da época) e depois, mais adiante, por um 3 em 1 – Stéreo Music Center – de marca Sharp.

Fui parar na banda da escola Presidente Roosevelt. Maria de Lourdes Porto Alegre, avó do cara aquele que ganhou o BBB (Dourado) me ensinou um pouco de piano e escaleta e me colocou lá. As bandas de escolas do bairro Menino Deus, onde cresci, em Porto Alegre, eram todas muito boas, como a nossa e a do colégio Duque de Caxias. No Ensino Médio conheci Adriana Calcanhotto através da professora Nélia da escola Infante Dom Henrique, que a descobriu. Por causa disso (e dos Beatles, claro) aprendi a tocar Violão e contrabaixo. Minha turma ia ao projeto Unimúsica da Reitoria da UFRGS, religiosamente a pé, todas às Sextas-feiras. Adolescemos vendo artistas como Nei Lisboa, Nelson Coelho de Castro e Cheiro de Vida se apresentarem em diversos espaços e se tornarem reconhecidos pela cidade.

Estou contando tudo isso – e haveria muito mais – pra dizer que a juventude de hoje, em termos musicais, está severamente enrascada. A mediocridade ronda a mente das crianças, desde a tenra idade até a maturidade relativa. Expostos a toda sorte de lixo comercial e industrial – parafraseando Renato Russo – eles estão viciados, desorientados e, virtualmente, perdidos. O jabá, em rádio, tomou conta de tudo, tudo mesmo. E as grandes multinacionais – as mesmas que pagaram pra música sair do currículo escolar – deitam e rolam em tempos de verdades absolutas midiáticas e censura velada. Tanta liberdade pra compartilhar conteúdo e os jovens, sinceramente, não sabem o que fazer com isso. O que sobrou pra cultura brasileira são esses pobres repetidores de fórmulas surradas e rasas: sertanejos, pagodeiros e funks.

Nada contra as pessoas que vivem dessa cultura de massa low brow, mas convenhamos, em música, só repetir não é o caminho. Pior, dizer sempre a mesma coisa enche muito o meu saco. Cornice, cornice, cornice. Sofrimento por amor. Violência, vingança, ostentação e ódio desmedido. Que porcaria é essa que estamos dando pras crianças? É realmente normal ver uma pequena de 2 ou 3 anos rebolando “na boquinha da garrafa” e repetindo “mama eu, mama eu, mama eu”? Onde está a música? Aquela riqueza de instrumentos das orquestras de elevador, riqueza de temas dos sambas da periferia do Rio e SP, a revolução dos anos 60, onde estão? Sumiu tudo com o reverberar tilintante das caixas registradoras dos donos dos meios de comunicação e com a acomodação dos pais que trabalham dia e noite “pra dar uma vida melhor” pros seus filhos que abandonaram na frente do computador ou do videogame muitas horas por dia.

Benditos são os espaços que ensinam e educam as crianças e os jovens com música. A música não só desenvolve a musicalidade – e pode parecer redundância – mas também a própria inteligência, autoestima e empatia com outras pessoas. Se a elas for dado pouco ou ou nada, ou ainda, algo pouco criativo, sem qualidade, infelizmente, esse será o espelho com o que ela era se moldará como adulto, e nosso mundo é muito desafiador para quem se espelha na mediocridade.

Um comentário:

  1. Saudades desse tempo, em que tínhamos "tempo" de escutar e trocar o disco, ou com calma avançar algumas linhas com a agulha para pular canções...

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