Pra isso eu tinha que aprender a tocar violão, mas antes o fascínio pelas rodinhas em torno do instrumento. Aqueles que conseguiam tocar várias músicas do repertório em voga da época, foram meus primeiros professores. Nei Lisboa não podia faltar em nenhuma delas. O disco era Pra Viajar no Cosmos Não precisa Gasolina e o ano era 83. Eu ainda demorei quase um ano do lançamento pra ouvir a bolacha, até que a irmã mais velha do amigo de infância comprasse. Mas foi amor a primeira vista.
“Keka qué casá com Zeca …” começa. Eu acho que só fui entender essa letra anos depois, quando comecei a frequentar o Bom Fim, seus bares e festas aqui e ali. É bem isso, a tribo toda em dia de festa. Do título chave a um imaginário oswaldiano onde se comprava de tudo: drugs, affairs e todos os gêneros MPB. Abre com um Jazz Reggae, mas tem marcha, blues, baladas, a maior parte com harmonia rica e ficou bem gravado.
O que eu nem imaginava é que eu conheceria o cara uma década depois por ser amigo dos amigos. Foi assim. Criei uma camaradagem com os caras da Anos Blues, que faziam um trabalho muito bonito trazendo o blues estilo Chicago pra Porto Alegre. Fui fotógrafo deles. Depois até acabei tocando com eles no final de sua existência. O Homero Luz, vocalista, acabou fazendo diversos trabalhos comigo nos anos 90, Os Cabeludos, Los Bucaneros, etc. Acontece que todos os músicos da cidade andavam pela Oswaldo Aranha de quinta a domingo. O Nei vivia ali porque morava perto.
A Anos Blues fazia bastante shows na época, muitos em bares no próprio Bom Fim ou arredores. De uma forma ou outra o Nei viu os caras e adorou. Ficaram amigos e começaram a beber e conversar em grandes mesas, principalmente na Lancheria do Parque, onde se podia juntá-las e fazer um grande rodão de convivas a conversar e beber. O Nei tinha uma música que cedeu pra eles, O Bife, fizeram um arranjo bem bacana com seu naipe de sopros e gravaram. Tocava muito na Ipanema FM, a rádio Rock mais importante da história da cidade.
Isso já era lá por 1992-1993, e eu já era um oswaldero de carteirinha a essas alturas e andava com o povo da Anos Blues e aí, na lancheria conheci Nei Lisboa. Fui algumas vezes nessa época na casa do cara beber e conversar, sempre com o séquito blueseiro à volta. Mas uma noite, talvez cedo demais ou num dia da semana – não sei direito porque eu ia oswaldear muito nessa minha época de músico – encontrei Nei sozinho na lancheria. Ele me chamou pra sentar à mesa com ele e ficamos papeando. Hoje pensando bem, percebo como eu tive dificuldades em interagir com ele. O problema é que eu era muito fã! Tive todos os discos dele – naquela época eu não tinha mais – e sabia muitas músicas de cor. Esse é um dos grandes problemas da idolatria, que hoje vejo com reservas, porém isso não me impediu de curtir os eventos.
Nessa noite talvez tenha acontecido uma das coisas mais incríveis que tive a sorte de presenciar em minha vida na música. Lá no Ap. do Nei, ele disse a uma certa altura, “eu quero te mostrar uma coisa”. Me levou pra uma ante sala onde estava seu computador e seu violão Takamine – eu nunca tinha visto um de perto, eles eram raros e caros nessa época – “quero que me digas se tu achas minhas novas músicas boas” e então ele tocou praticamente inteiro o disco que viria a se tornar Amém.
Com forte influência do Candombe Uruguaio, Nei recuperava seu trabalho autoral em 1993. Tendo vivido naquele país durante uma boa temporada, ainda trouxe na bagagem o amigo e grande tecladista Mauricio Trobo e uma admiração por Rubén Rada, ícone nacional, citado literalmente em Amarycá, primeira música que ele tocou pra mim (e a que viria a abrir o disco), que me deu nó na garganta de tão boa. Era uma paixão latino-américa que despontava e ele me disse “quero botar percussão e umas backing vocais também”. Não deu outra, é um disco suingado, com um time de músicos incríveis, participações especiais e gravado ao vivo no Teatro São Pedro.
É um álbum alegre, diverso e bonito do início ao fim, e eu fiquei ali ouvindo em primeira mão, com as concepções dos arranjos embutidas na batida do violão que o cara sempre tocou muito bem. Absolutamente lindo. Eu tinha também lido o livro que ele escreveu, acho que se passa inclusive no Uruguai, “Um Morto Pula a Janela”, com prefácio do grande Luís Fernando Veríssimo. Aliás tenho uma história curiosa sobre esse, certo amigo meu, apaixonado por literatura soube que eu tinha o livro, me telefonou e disse que estava vindo buscá-lo em minha casa. Ele me disse, “eu sei que esse livro é bom, e eu não vou te devolver, tá?”. Comecei a rir e não consegui dizer não pra ele.
“Eu estou montando um show com músicas de outros artistas, que me influenciaram e queria algumas (revistas) emprestadas”, “claro, cara, sem problemas, tu vem aí?”, “sim, to indo, daqui a pouco to aí”. E lá vem o Nei Lisboa dobrando a esquina da Gumercindo Saraiva com a Barbedo. Acho que minha mãe deve ter dito algo tipo “Boa tarde seu Nei Lisboa, seja bem vindo à nossa humilde casa”. Muito tímido, ele foi comigo até meu quarto, entreguei-lhe o masso de revistas que guardo até hoje. Ele olhou todas, foleou algumas e levou mais as de repertório internacional, incluindo uma só dos Beatles. “Depois eu te devolvo, ok?, e devolveu, não me lembro como, talvez tenha me levado na Oswaldo, e eu, “não tem pressa ok, me devolve quando quiser”.
Depois disso só o vi em shows por aí. Ele saiu da Oswaldo e não pintou mais nos arredores. Eu casei e também sumi. Mas Porto Alegre é bem pequena e provinciana e os encontros são sempre possíveis aqui e ali, ou talvez, quem sabe, na Oswaldo.