Essa coluna "Começando a ouvir" pretende ser um guia pra quem quer começar a curtir determinado artista, mas tem medo de escolher uma obra errada e não gostar. É uma preocupação besta? Mais ou menos. Uma experiência ruim com uma música ou filme pode te afastar do diretor ou compositor/cantor por um bom tempo, e aí até a fila passar pra ver ou ouvir de novo ...
Por isso escolhi de cara uma artista difícil, é importante gostar dele, pois sua obra é gigantesca, complexa e seminal para a música e para o Rock'n Roll.
Então, vamos lá.
Esse cara entrou em minha vida através dos amigos, e é sempre bom ter amigos bem informados e que cultivem a audiofilia como hobby. Melhor, que tenham dinheiro pra comprar discos... isso em minha época de jovem (anos 80/90) em que não havia internet. Hoje todo mundo compartilha tudo em todas as redes e plataformas. Há um excesso de compartilhamento e isso é bom, mas pode ser ruim também. Talvez muitos dos "novos audiófilos", entusiasmados, não tenham paciência pra ouvir uma música inteira, que dirá um álbum, ou mesmo apreciar uma obra inteira!
Isso é ruim, mas a seção Começando a Ouvir te leva lá!
Então vamos partir do pressuposto que apreciamos álbuns inteiros e até eventualmente os compramos via internet (porque ir a uma loja durante a pandemia tem seus riscos), por onde começaríamos com o Zappa?
Começarei por onde eu mesmo comecei. Então como eu dizia, um de meus amigos, que comprava discos, me apresentou um álbum duplo que tinha saído há pouco tempo (sim, o Zappa estava vivo ainda!).
THEM OR US - 1984 - Por que o Them Or Us é um bom álbum pra começar?
Em primeiro lugar porque é um excelente disco, duplo em vinil, ficou simples em CD e tem um pouco de tudo da obra de Zappa (que o autor intitulou de projeto-objeto). Tem canções tipo anos 50 de amor (a abertura "The Closer You Are") tem as engraçadinhas que podem provocar gargalhadas mesmo pra quem não entende as letras com "Frogs With Dirty Little Lips". Imagine um brejo, todos os insetos, répteis e anfíbios reunidos naquele clima tropical e caliente. "Sapos, com labiozinhos sujos, linguinhas sujas cobertas com moscas..." e por aí vai. Mas o nojo vem misturado com muita graça pela forma grave e cômica com que o compositor canta. E tem um contrabaixo slapiado que é a âncora da música, junto com muitos efeitos que simulam um ambiente florestal ... Obra prima. Mas além do nojo e da comicidade há mais um aspecto a realçar nessa canção, principalmente em seu final. Ela é um hino do brejo! Termina com um esfuziante e repetitivo "laralará, laralará, laralará, laralalálála", em ritmo de marcha, como um hino mesmo.
Tem o hino dos Dentistas, "Baby Take Your Teeth Out". Tem um apelo pra que EUA/URSS não destruam o mundo em uma linda (e hilária) canção cantada por Bob Harris "The Planet Of My Dreams".
Tem a música séria do Zappa também. "Sinister Footswear II", uma versão para banda da música composta para um balé! Sim é séria, tem aquelas frases/harmonias típicas de Zappa como tema central da música, mix de música erudita/Jazz. E a versão de "Wipping Post" dos Allman Brothers é sensacional. Gravada ao vivo (dá pra ouvir os aplausos no fundo) tem a energia da banda e do grande cantor que é Bobby Martin.
Tem uma regravação de "Sharleena" (belíssima rock/blues/soul ballad do álbum "Chunga's Revenge") que virou um reggae e é um dos pontos altos do disco com a incrível voz de Ray White predominando e o solo do filho do mestre, Dweezil Zappa (que já impressionava nessa época).
Mas o ponto alto do disco sem dúvida, é a faixa que abre o lado três do antigo vinil. Mais uma vez cantada por Ray White "Stevie's Spanking" é irresistível à primeira ouvida. É um Rockão bluesado, com guitarras respondendo à letra, e que tem solo de um dos grandes e eternos pupilos de Zappa, Steve Vai, duelando com Dweezil. Essa é Sensacional! O que torna tudo ainda mais interessante é o tema da canção, bizarro mais uma vez: O espancamento do guitarrista Steve Vai, ele teria supostamente contratado uma moça para aplicar-lhe uma surra em uma ocasião sexual .. ouça a música e tire suas conclusões.

ZOOT ALLURES - 1976 - Esse é um dos melhores álbuns do Zappa, daqueles bons de ouvir de tempos em tempos. Também tem de tudo um pouco.
Ele foi uma colagem de coisas dispersas que o Zappa tinha de tempos próximos (ele gravava tudo!) em um momento em que a banda dele era somente o Terry Bozzio, baterista que está sentado no banco mais alto. O Patrick O'Hearn, (à esquerda) baixista, e o Eddie Jobson (à direita, no banco, multi-instrumentista) entraram depois que o disco estava pronto e não participaram, quer dizer, a própria capa já é um paradoxo, bem coisa de Zappa.
Sem baixista (tchau Tom Fowler) e sem tecladista (bye bye Jorge Duke), sem banda, o Zappa teve que se virar tocando contrabaixo e teclados, pianos, além de fazer o vocal principal em quase todas as músicas.
Abre com Davey Moire cantando em falsete a engraçada "Wind Up Workin' In A Gas Station" onde o mestre fala da vida do norte-americano mediano, burro, aliás muitas músicas desse disco têm essa crítica como em "Wonderful Wino" e "Disco Boy".
Em seguida, uma das valsas instrumentais mais clássicas do véio, "Black Napkins". O cara recrutou às pressas o velho companheiro Roy Estrada pra fazer o contrabaixo em uma pequena turnê japonesa, ainda com o soprista e cantor Napoleon Murphy Brock e Terry Bozzio. A versão completa está no Bootleg "The Eyes of Osaka". Essa canção é uma bela introdução ao Zappa como guitarrista. Que solo! ele gira em torno de uma única variação harmônica que se repete e se repete. Hipnotizante.
Depois, uma das canções mais conhecidas do mestre, a longa lenta e bizarra "The Torture Never Stops". Essa já foi canção escolhida pela falecida e prestigiosa revista "Playboy", por ter mulheres gemendo de prazer durante a faixa! E mais uma vez o tema da canção é bizzaro: um asilo de loucos, sujos, maltrapilhos ... e a tortura nunca acaba. Além dos muitos e simultâneos solos de guitarra bem aguda que Zappa faz contrastar com sua voz grave e suplicante, tem um contrabaixo. Sim, um baixo tocado pelo próprio Zappa com maestria e solando muito. Delírio.
O lado B (ou 2) do antigo vinil abre com "Find Her Finer", que começa com a harmônica de Captain Beefheart, outro seguidor fiel de Zappa, com a vantagem de ser amigo de infância também. A canção é hipnotizante e comercial ao meu ver. Os vocais são um primor e levam a canção até o final, com o sensacional falsete de Roy Estrada.
Em "Friendly Little Finger" o experimentalismo toma conta e Zappa mistura coisas que foram gravadas com propósitos diferentes, para gravações diferentes, em andamentos e tempos diferentes. O resultado do dedinho amigo é no mínimo inusitado. É estranho, é bonito, é diferente, é curioso.
E tem a faixa título, "Zoot Allures", uma composição bem jazzística, outro clássico instrumental zappiano. A guitarra parece limpa, mas eis que surgem os feedbacks de guitarra ao fim de cada frase melódica. E eles fazem parte da melodia! Sensacional. As viradas de Bozzio são de mestre. As subidas de tom fazem parte da harmonia e aí o cara dá uma aula de como compor boas canções instrumentais. Elas preparam para o solo, no final, em fade out ...
"Disco Boy" é um clássico da tiração de onda zappiana sobre a "Disco" ou "Discoteque", principal música comercial do final dos anos 70. Essa tiração de onda continuaria com muita força e comicidade em "Dancin' Fool" do álbum Sheik Yerbouti. Essa fecha o álbum em altíssimo nível e dá vontade de ouvir de novo.
É, galera, acho que começando por esses dois está bem encaminhada a devoção a esse gênio, um dos mestres absolutos da música contemporânea e do Rock´n Roll.
Até a próxima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário